Eu e eles formávamos um par. Ainda há pouco, eu sabia o melhor cadarço para cada um. Hoje, os pares andam meio frouxos, solitários. É até estranho chamá-los de par. Sapatos só ficam realmente juntos quando estão afastados dos pés. Quando calçados, se cruzam rapidamente entre um passo e outro, mas não se encostam. Mesmo seguindo na mesma direção, é cada um para o seu lado…
Na maioria dos passeios, andávamos mudos pelo mundo. Eu, com as mãos ansiosas no bolso, sempre em busca da próxima música capaz de romper esse silêncio. Eles, meus calçados, sempre calados na boca de uma estrada qualquer à espera do meu próximo passo. Eles, que já me levaram para tantos lugares, hoje me são quase inúteis. Aqui dentro, a sapateira não passa de um estacionamento abandonado no hallzinho de entrada da minha casa no qual, vez ou outra, uma leve brisa de chulé visita as narinas mais sensÃveis. Lá fora, tudo soa tão descartável. Parece que nós fizemos um nó com todos os nossos laços.
Não sei se os sapatos têm sentimentos, mas me dá dó só de vê-los enfileirados. Confinado há quatro meses, me desacostumei a calçá-los. Pé direito, pé esquerdo… Perdi o hábito de caçá-los por aÃ, espalhados pelos quatro cantos desse espaço onde habito. Eles agora me são estranhos. Não os reconheço mais. Nem sei se ainda cabem em mim.
Sinto que perdemos a intimidade daquele tempo não tão distante. Tempo bom dos longos passeios até a livraria Do Bairro. Ou, quando estávamos mais inspirados, estendÃamos nossos passos até a Praça — um dos pulmões de Goiânia que não deixa sufocar de vez. Eu pisoteava com delicadeza o meu percurso. Evitava pedras portuguesas — pontiagudas — para não ferir a sola dos meus fiéis companheiros de caminhada. Eu procurava sempre o chão mais macio para que a sola não sentisse o peso que é andar rumo ao futuro incerto. Às vezes, não pensar no futuro é o que me consola.