Rem édios e doenças
A ideia de doen ça é con h ecida em t odas as cu l t u ras e idiom as; desde t em pos im em oriai s, sem pre
h ou ve u m a palavra de sen t ido equ ivalen t e em cada l ín g u a qu e rem et e a u m a “au sên cia de bem -est ar”,
com o o su bst an t ivo “doen ça”,
a
ou seja, dor , descon f ort o, m olést ia, en f erm idade, padecim en t o f í sico
ou psíqu ico. Com o u so da palavra “doen ça”, diz -se qu e o est ado de saúde da pessoa à qu al o t erm o
é apl icado n ão é com o deveria ser ou com o normalmente se esperaria qu e f osse. Doen ça in dica u m a
an orm al idade n o est ado de saúde da pessoa doen t e.
Em seu u so con t em porân eo, n o en t an t o, a palavra “doen ça” (en f erm idade, m olést ia) t en de a ser
adot ado em al t ern ân cia com o con cei t o de “con dição m édica, ou con dição cl ín ica”. Est e úl t im o
pret en de ser apen as u m equ ivalen t e do prim ei ro, m as ag reg a u m sig n i f icado f u rt ivo e cru cial qu e
m u da t oda a qu est ão da “au sên cia de bem -est ar” para u m n ovo reg i st ro: de u m a condição a u m a ação
qu e t al con dição su post a ou declaradam en t e im põe. De f at o, o n ovo con cei t o at ribu i à ação real iz ada
ou prest es a se real iz ar o poder de def in i r a con dição qu e se deve com bat er: h oje, qu an do os m édicos
en t ram em cen a, é qu e o dram a passa a represen t ar u m a doen ça.
Desse m odo, o con cei t o de “con dição m édica ou cl ín ica” an t ecipa o problem a qu e, n ão f osse
por i sso, est aria su jei t o a debat e e t alvez a con t rovérsias: o problem a de decidi r se a condição em
ex am e est á desen volvida e é t rat ável por in t erven ção médica. Presu m e-se qu e já se decidiu (“é
eviden t e”) qu e se deve ch am ar ou con su l t ar u m m édico; qu e é preci so f az er ex am es cl ín icos; qu e se
devem prescrever , com prar e con su m i r m edicam en t os: e qu e é preci so seg u i r u m t rat am en t o.
Con f i rm a-se ain da, por ci rcu n lóqu ios, qu e as prof i ssões de m édicos e f arm acêu t icos devem det er o
con t role do corpo e do espí ri t o da pessoa doen t e.
Qu an do iden t i f icam os a doen ça à “con dição m édica ou cl ín ica” (e assim , in di ret a m as
f orçosam en t e, u m a projeção do at o de in t erven ção m édica), o f at o de est ar doen t e é def in ido pela
ci rcu n st ân cia de a pessoa est ar su jei t a a, ser qu al i f icada para e n ecessi t ar de ação m édica. “Est ar
doen t e” ag ora sig n i f icar pedi r aju da de u m m édico; e u m m édico qu e proporcion a aju da det erm in a
qu e a con dição é de doen ça. O qu e n asceu prim ei ro, o ovo ou a g al in h a? Sobret u do, qu al dos f at os é
a g al in h a e qu al é o ovo?
Nu m a an ál i se qu e se desen volveu em t rês g ran des est u dos n a New Y ork Review of Books (15 jan
2009), Marcia An g el l af i rm ou qu e, “n os úl t im os an os, as em presas f arm acêu t icas aperf eiçoaram u m
n ovo e ef icien t e m ét odo de am pl iar seu s m ercados. Em vez de prom over m edicam en t os para t rat ar
doen ças, com eçaram a prom over doen ças para seu s m edicam en t os”. A n ova est rat ég ia “é con ven cer
os am erican os de qu e só h á doi s t ipos de pessoa: as qu e sof rem de con dições cl ín icas e ex ig em
t rat am en t o m edicam en t oso e aqu elas qu e ain da n ão sabem di sso”.
Gost aria de sal ien t ar , porém , qu e n ão f oram n ecessariam en t e as em presas f arm acêu t icas qu e
in ven t aram e desen volveram essa n ova est rat ég ia. É m ai s provável qu e elas t en h am se orien t ado por
u m a t en dên cia u n iversal do m ark et in g . Hoje, a of ert a de n ovas m ercadorias n ão seg u e a dem an da
ex i st en t e: é pr eci so criar demanda para mer cadorias que já foram lançadas no mer cado e,
portanto, segui r a lógica de uma empr esa comer cial em busca de lucr os, e não a lógica das
necessidades humanas em busca de sat i sfação. Essa n ova t en dên cia só se real iz a plen am en t e se
n ossa cabeça t iver sido im preg n ada da ideia de qu e n ão h á e n ão pode h aver l im i t es ao n osso n ível
de t en t at ivas de au t oaperf eiçoam en t o e sat i sf ação proporcion adas por in crem en t os desses n ívei s. Por
m ai s ex celen t e qu e seja su a con dição f í sica at u al , sem pre é possível t orn á-la ain da m elh or.
Se o est ado de saúde n ão t em apen as u m n ível in f erior , m as t am bém u m n ível su perior – o qu e
n os perm i t i ria relax ar qu an do ele f osse at in g ido –, a qu al idade do bom condicionamento f í sico, qu e
passou a su bst i t u í -lo ou deslocá-lo para u m a posição secu n dária em n ossas preocu pações at u ai s, n ão
t em l im i t es: ao con t rário dos cu idados com a saúde em seu sen t ido t radicion al e ort odox o, a lu t a pelo
con dicion am en t o f í sico jam ai s acaba. Nu n ca deix arão qu e relax em os n ossos esf orços. Por m ai s
con dicion ado qu e você est eja, sem pre poderá m elh orar; seu g rau de sat i sf ação sex u al sem pre poderá
será m elh or do qu e h oje, os praz eres, m ai s praz erosos, os delei t es, m ai s delei t osos.
A in ven t ividade das em presas f arm acêu t icas redu z -se ao cont r ole e di r ecionamento da
autoridade e da força persuasória da pr eocupação com a saúde no sent ido de uma busca cada vez
mai s intensa de apt idão f í sica e de autoconf iança – lu t a qu e n ós, con su m idores n u m a sociedade de
con su m idores, f om os im pel idos, persu adidos e t rein ados a t ravar . Já se t orn ou part e de n ossa
f i losof ia de vida – ou m elh or , de n osso sen so com u m – qu e acat ar a via para m elh orar a apt idão
f í sica e t er m ai s au t ocon f ian ça passa pelo est u do at en t o das n ovas peças pu bl ici t árias e t erm in a n as
lojas. I n t eg ran do n osso sen so com u m , i st o é, f az en do part e da l i st a de coi sas qu e “t odo m u n do sabe”,
“t odo m u n do acei t a” e “t odo m u n do f az ”, esses t ru í sm os se con vert eram n o m ai s im port an t e e
in esg ot ável recu rso das em presas em su a lu t a por lu cros cada vez m aiores.
Não im port a m u i t o se a m olést ia con t ra a qu al os n ovos m edicam en t os prom et em ag i r é séria ou
n ão, se su as con sequ ên cias são g raves, am eaçadoras e cau sam prof u n do descon f ort o para su as
ví t im as. O qu e in t eressa é se a con dição m édica é com u m , e, port an t o, se o n úm ero de pot en ciai s
con su m idores da drog a é g ran de e g aran t e boa ex pect at iva de lu cros para a em presa. De acordo com
esse prin cípio, as af ecções com qu e a m aioria de n ós est á acost u m ada a l idar cot idian am en t e (seja
az ia, t en são pré-m e