Sou de vidro
Tenho perna de vidro, tenho dente e cor de vidro.
E permito-me dizer que tenho tudo isso até o amanhecer,
quando em pedaços me espalharei, dando a cada um, um pedacinho de mim.
Um eu feito de jasmim, de flores tão apaixonadas como o meu desejo de ser de todos.
Sou de vidro. Sou transparente, quase que um meio fio perto de Deus.
Minha alma se enxerga, minha calma também.
Meu pescoço é de vidro, riscado por dentes de passagem, fome momentânea.
Sou de vidro.
Arco-íris de pó de vidro, moído, estilhaçado, agora, dando a cada um, um pedacinho de mim.
Sou um pote com ouro em vidro. Guardo a eternidade em mim,
que sinto sempre igual no sorriso sem dente de um idoso e de uma criança.
Sou a estrela de vidro, guardada no jardim da esperança.
Sou de vidro, alimento-me do calor, do frio e do seu sim, agora, todo seu, um pedacinho de mim.
Sou puro, sou pureza, cada qual com sua carregada forma de escutar o canto dos pássaros, de vidro.
Sou de vidro, quebro fácil, e até o amanhecer me espalharei,
para ter certeza de que terei outras razões de existir em você.
Sou de vidro.
Sou tão assim de vidro.
Sou mesmo de vidro, um espelho real que esquenta no passo calmo do sol, de vidro.
Tudo é vidro.
Vidro, alma, umbigo, jaula, tigre, mato, árvore, ar, alegria, dentes, saliva, boca, berro.
Sou tão de vidro que me encolho em noites de garoa, para esperar sempre o amanhecer,
em que me estilhaço, dando a cada um, um pedacinho de mim.
Há quem tenha em mim seu alimento especial.
Sou de vidro, não faço mal. Faço o bem, faço qualquer vem e vai,
em passos descalços, cortantes, constantes, de vidro.
Não comento nada para ninguém. Sou de vidro, sou alguém.
Estilhaço.
Amanheceu.
A cada um, um pedacinho de mim.
(Rafa Silvestre-Poesia de Momento)