A LOUSA DO ALZHEIMER {...}
O amor não precisa de palavras. Eu vejo filhos acompanhando seus pais com Alzheimer. Eles entenderam a força do que digo: O apego vai além da comunicação. É arrepiante no inÃcio conviver com quem não o reconhece, não se lembra de quem você é, troca o seu nome, atravessa surtos de agressividade, ignora a existência dos netos, entra numa espiral de trato áspero, defensivo e de frequentes apagões. Não há glamourização na enfermidade de um ente querido. Corresponde a um violento deslocamento de papéis, a uma inadequação social, a constrangimentos Ãntimos, a uma exaustão emocional. Talvez seja a mais turbulenta tentativa de tradução de um universo interior.
Mas todo filho que testemunha a demência paterna ou materna, com a contiguidade miúda e extrema, descobre uma segunda via de acesso para a alma. Ainda tem aquele rosto para segurar com as mãos, aquele olhar para aproximar nariz com nariz, aquele corpo para abraçar e encaixar a bochecha no ombro. Você se segura no afeto, no carinho diário, ainda que a lição seja removida na hora seguinte. É como escrever na lousa da escola. Por mais completa que seja a sua resposta a uma equação matemática, por mais bonita que seja a sua caligrafia num texto redigido de costas para a turma, logo o apagador do professor não deixará mais nada ali, para seguir com a próxima tarefa, para dar espaço a outro colega. O que foi escrito no quadro não dura até a aula seguinte. Não que o conteúdo posto na superfÃcie não tenha sido valioso, mas a vontade de viver não decorre mais da permanência ou da posteridade da letra. Você carrega a experiência dentro de seu dever. Você já se torna uma pessoa melhor por se expressar.
Significa uma escola de recomeços. É uma barra simbólica de giz branco por dia. É uma mensagem com o toque dos dedos, alisando os cabelos, afagando a testa. Logo seus gestos serão olvidados pelo feltro do apagador. E não poderá se valer de nenhuma recompensa, não poderá se fiar na fixação dos acontecimentos.