Imaginem um mundo de coisas limpas e bonitas, onde a gente não seja
obrigado a fugir, fingir ou mentir, onde a gente não tenha medo nem se
sinta confuso (não haverá a palavra nem a coisa confusão, porque tudo
será nítido e claro), onde as pessoas não se machuquem umas às outras,
onde o que a gente é apareça nos olhos, na expressão do rosto, em todos
os movimentos — acrescentem a esse mundo os detalhes que vocês quiserem
(eu me satisfaço com um rio, macieiras carregadas, alguns plátanos e uma
colina — ou coxilha, como se diz aqui no Sul — no horizonte), depois
convidem pessoas azuis para se darem as mãos e fazerem uma grande
concentração para concretizar esse mundo — e, então, quando ele estiver
pronto, novo e reluzente como se tivesse sido envernizado, então nós nos
encontraremos lá e eu não precisarei explicar nada, nem contar nenhuma
estória escura, porque estórias claras estarão acontecendo à nossa volta
e nós estaremos sendo aquilo que somos, sem nenhuma dureza, e o que
fomos ficou dependurado em algum armário embutido, junto com sapatos
(quem precisará deles para pisar na grama limpa dessa terra?), roupas e
enfeites (quem precisará de panos, contas ou cores na terra onde o ar
será colorido e enfeitará nossos corpos?)— lá, eu digo, nós nos
encontraremos entre centauros, sereias, unicórnios e duendes, e sem
dizer nada, com um olhar verde (uma das minhas grandes frustrações
sempre foi não ter olho verde — mas lá eu terei) eu direi o quanto gosto
de vocês, e voaremos de tanta boniteza — combinado? — Caio Fernando Abreu
obrigado a fugir, fingir ou mentir, onde a gente não tenha medo nem se
sinta confuso (não haverá a palavra nem a coisa confusão, porque tudo
será nítido e claro), onde as pessoas não se machuquem umas às outras,
onde o que a gente é apareça nos olhos, na expressão do rosto, em todos
os movimentos — acrescentem a esse mundo os detalhes que vocês quiserem
(eu me satisfaço com um rio, macieiras carregadas, alguns plátanos e uma
colina — ou coxilha, como se diz aqui no Sul — no horizonte), depois
convidem pessoas azuis para se darem as mãos e fazerem uma grande
concentração para concretizar esse mundo — e, então, quando ele estiver
pronto, novo e reluzente como se tivesse sido envernizado, então nós nos
encontraremos lá e eu não precisarei explicar nada, nem contar nenhuma
estória escura, porque estórias claras estarão acontecendo à nossa volta
e nós estaremos sendo aquilo que somos, sem nenhuma dureza, e o que
fomos ficou dependurado em algum armário embutido, junto com sapatos
(quem precisará deles para pisar na grama limpa dessa terra?), roupas e
enfeites (quem precisará de panos, contas ou cores na terra onde o ar
será colorido e enfeitará nossos corpos?)— lá, eu digo, nós nos
encontraremos entre centauros, sereias, unicórnios e duendes, e sem
dizer nada, com um olhar verde (uma das minhas grandes frustrações
sempre foi não ter olho verde — mas lá eu terei) eu direi o quanto gosto
de vocês, e voaremos de tanta boniteza — combinado? — Caio Fernando Abreu
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