OLHE AO REDOR...
© Clarice Lispector
"Olhe para todos a seu redor e veja o
que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos
porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas, coisas e coisas,
mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já
não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado
do lado de fora, pois as catedrais que
nós mesmos construímos, tememos
que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos,
pois isso seria o começo de uma vida
larga e nós a tememos. Temos evitado
cair de joelhos diante do primeiro de
nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes
sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, mas sem usar
a palavra salvação para não nos envergonharmos
de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não
termos de reconhecer sua contextura de ódio,
de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte
para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte por não saber como
é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa
indiferença, sabendo que nossa indiferença
é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo o
grande medo maior e por isso nunca falamos
o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado
uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata
mesquinhez de nos lembrarmos a tempo
dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos para não
rirmos de nós mesmos e para que no fim
do dia possamos dizer "pelo menos não fui
tolo" e assim não ficarmos perplexos antes
de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não
sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de
cada dia."
© Clarice Lispector