“Sabe, achei interessante a sua postagem. Mais do que isso, a maneira como coloca a situação da personagem. As vezes o medo faz com que a gente se cale, e as pessoas simplesmente ignoram o fato de existirem milhares de coisas detras do nosso silêncio. Eu acho que não estou preparada para contar à minha familia o que aconteceu. Nunca estive. E talvez, nunca vá estar. Mas preciso de ajuda. Preciso falar.”
Passei o meu e-mail pra ela e disse que, se ela precisasse de qualquer tipo de ajuda, era só falar. E ela falou. Se apresentou pra mim, me disse seu nome, mas me pediu para mantê-la no anonimato, caso eu fosse publicar nossa conversa aqui no bloguinho, e é o que farei. Antes mesmo de conhecer sua história, eu lhe enviei um e-mail falando que não sabia bem como poderia ajudar, mas dando todo o apoio pra que ela contasse pra alguém, denunciasse seu agressor. Disse que em mais da metade dos casos de estupro o agressor é um amigo da família, ou até um membro da própria família. Por isso, ela não precisava se calar se, no caso dela, essa pessoa fosse alguém próximo. Finalmente, lhe enviei um link de um site que dá apoio às mulheres que sofreram qualquer tipo de agressão. Disse-lhe também que ela não precisava me contar sua história, se não se sentisse à vontade pra isso. No mesmo dia, ela me respondeu:
“Oi Luciano! Eu li o que você me escreveu, e confesso que me surpreendo cada vez mais com o seu esforço em lidar com essa situação, na tentativa de ajudar pessoas como eu. Bom, pelo que você escreveu, tive a impressão de que você pensa que sou uma ‘mulher’, e dessa forma, independente. Então… Acontece que tenho 16 anos, frequento o ensino médio e ainda moro com os meus pais. Digamos que sou bem dependente ainda. Quanto a minha história, é um pouco longa, então vou resumir mais ou menos como as coisas aconteceram. Quando eu tinha 11 anos o meu pai começou a mexer comigo, passando a mão pelo meu corpo e me beijando. Depois de um tempo a situação foi piorando, até que ele começou a abusar de mim.
Eu queria gritar, correr ou contar pra alguém, mas o medo me deixava completamente desnorteada. Eu dei varios sinais de que estava com problemas, como notas ruins, isolamento ou meus constantes desenhos de pessoinhas nuas (nem eu sei explicar o motivo pelo qual as desenhava assim), mas parece que todos os sintomas passaram despercebidos aos olhos alheios. Desenvolvi anorexia e bulimia, chegando a estado grave. Ele parou de me molestar devido a esses transtornos alimentares, entretando nunca consegui ser a mesma. Ele me fez prometer que iria guardar segredo, e eu cumpro essa promessa há anos. Eu tenho medo, não só da reação dele mas das outras pessoas também. E vergonha, muita. Sabe, já andei pesquisando e no Brasil as leis não são muito simples. Eu deveria ter denunciado até 6 meses depois do ultimo estupro – agora a denuncia pode não ser mais válida. E a minha mãe não pode sair de casa comigo, pois assim ela perderia todos os direitos pra ele. Sem falar que ela poderia ser acusada por negligencia – mesmo ela tendo não notado não por mal (ela é uma pessoa meio distraida mesmo). Entrei no link que você mandou, ele se refere a uma casa que abriga mulheres que foram violentadas. Como eu disse, só tenho 16 anos e não posso sair de casa… Muito menos ir para Lisboa. Rs. Mas obrigada por ter ido atrás, foi bem gentil de sua parte. Ah, você pode publicar a nossa conversa sim. Mas mesmo existindo milhares de — no mundo, prefiro que me deixe como anônima.
Obrigada pela ajuda, é um alivio poder contar isso pra alguem. Um abraço, –.”
Então, eu respondi:
“–, fico muito triste por não poder te ajudar devidamente. Pelo que parece, você entende do assunto muito mais do que eu, então, podemos tirar uma conclusão: o seu silêncio e o silêncio de tantas outras meninas/mulheres, não vem por parte da ignorância. É pelo medo mesmo, pela vergonha. E eu não vou dizer “não tenha medo, não tenha vergonha”, porque é fácil falar. Fazer é muito complicado. Sei que não posso ter nem metade da noção de sua história apenas pelo seu e-mail, mas sigo te apoiando pra que você denuncie seu agressor. Mas pra mim é difícil imaginar: uma pessoa que fez isso com você, mas que, bem… é seu pai. É muito complicado, muito. Mas essa nossa conversa não vai ser em vão. Vou publicá-la no bloguinho e, assim, fazer com que os meus leitores notem que esse tipo de história não acontece apenas nos filmes. Existem muitas Melindas por aí. Assim,
se alguém souber como te ajudar, se alguém que ler o post tiver mais conhecimento no assunto do que eu, ele falará nos comentários. E você poderá ler. Só que o primeiro passo tem que vir de você. E esse primeiro passo é, realmente, o mais difícil. Mas só pelo fato de você estar contando isso, mesmo que via internet, mesmo que pra uma pessoa que você não conhece, acredite, esse já pode ser considerado um passo. Muito obrigado por compartilhar sua história, e mil desculpas se eu fui meio inútil. Mas, pra mim, o seu e-mail foi mais do que significativo. Tudo de bom!”
Os e-mails se auto-explicam. Se alguém souber como ajudar, essa ou outras Melindas, por favor, pronuncie-se.